quarta-feira, agosto 02, 2006

O esquecido Zé Mané - Arthur Dazzani

Esquecia-se dele mesmo. Na verdade, nunca soube quem era. Então, como podia esquecer-se dele mesmo? Mas o fato é que esquecia. Sua essência era uma vaga lembrança, mas a única coisa que podia vender como verdadeira, como preciosidade. E ele não o fazia.
Ah, mas essa tal de essência foi sendo sobreposta pelas inúmeras tentativas (e a maioria com sucesso) de formação e consolidação de outra imagem sua. Aliás, de outra pessoa, mas com a mesma feição. E entre uma tentativa e outra, uns repiques de alegria, e umas pitadas de felicidades proporcionadas pos esses momentos impostos ou auto-impostos, a essência foi sendo esquecida. Em vez de emoldurá-la e pregá-la na parede da sala principal, para valorar a si mesmo e lembrar-se do que realmente era, ele guardava-a no sótão ou escondia-a em caixas de papelão no fundo da garagem. E ia deixando que as traças do imaginário e o tempo se encarregassem de aquietar e adestrar aquela essência encantadora, legítima, impulsionadora, desafiadora e garantidora de prováveis sucessos.
É que no fundo a imensa maioria vive de momentos de frugalidades e futilidades. Freqüentemente veste carapuças, se fantasia de Super-Homem ou Mulher Maravilha, com capas do Battman e da Mulher-Gato, quando na verdade muitos não passam de homens invisíveis.
Mas o nosso personagem já tentara de tudo: fora vendedor competente, diretor engravatado, acadêmico assoberbado. Enfim, seguiu todas as receitas que os homens de bem lhe ensinaram ao longo da vida, e que certamente seriam infalíveis para colocá-lo em destaque na sociedade, e para que fosse visto com respeito e seriedade. Não havia dúvidas que todos aqueles personagens impostos ou sugeridos trariam o sossego e o conforto financeiro que todo ser humano merece.
E não é que Zé Mané era obediente?! Seguia à risca tudo que papai e mamãe diziam, tudo que titio e titia ensinavam e as etiquetas e regras de conduta que os bem vividos exigiam. Vez por outra dava uma olhadela, de relance, na caixa que guardava sua essência. Pensava até em dar uma lustrada nela, um brilho especial, uma recauchutada ou uma boa encerada. Mas nunca ousou em sair por aí exibindo sua preciosidade. Era certo que tratariam com desdém, fariam cara de repúdio.
Então era melhor o bom e velho costume confortável, do que ter um imenso trabalho de ter que vender e convencer que era a sua essência que lhe garantiria sua sobrevivência. Não a financeira, mas a da alma, do espírito. A que alimentaria sua coragem, sua motivação e lhe daria força para por em prática tudo que nela continha, mesmo que tudo parecesse incerto e arriscado aos olhos de muitos, mas que com certeza haveria de encontrar adeptos, financiadores e compradores para continuar com sua busca incessante e energizante de preenchimento dos seus espaços vazios.
Um dia Zé Mané criou coragem. Muitos parentes e amigos antigos já haviam morrido, não havia mais pais e avós, os círculos de amizade forma renovados, a barba feita e os poucos cabelos brancos já haviam aparecido e seus medos foram se diluindo.
Uma quebrada de cara ali, uma derrapada acolá, algo fez com que Zé Mané fosse lá, no sótão, sorrateiramente, sem ninguém saber, e contemplasse sua essência. Nunca precisou buscá-la, pois ela sempre esteve no mesmo lugar, à sua espera, sabendo que mais cedo ou mais tarde ele haveria de voltar para resgatá-la, como fazem os corajosos, os destemidos, os felizes, os artífices e construtores da sua própria vida, como ela efetivamente deve ser vivida. E os sonhos antigos, guardados e derivados da sua essência, tomaram forma, foram criando vida, andaram descalços, se lapidaram, se fizeram valer. Claro que algum tempo foi perdido, que muitas oportunidades jamais tornarão a existir, muitos amigos já se foram e se privaram do deleite de ver Zé Mané feliz, e muita coisa não pôde mais ser feita.
Mas o tempo e a felicidade não se contam pelas horas passadas, pelos anos corridos, mas pelos momentos aproveitados, pelos sonhos vividos, pelos amigos criados, pelo sorriso e alegria dos filhos, pelo doce olhar da amante, pelas esperanças realizadas e pelo que há por vir.
E foi assim, lutando contra tantos e contra ele mesmo, que José Manoel conseguiu transformar um apelido em nome próprio.

Um comentário:

Anônimo disse...

Cada palavra que você escreveu, remete algum momento da minha vida, é impressionante como consegui me identificar em vários momentos, acho que tenho um Zé Mané também dentro de mim, mas ele não está mais adormecido. Emocionante cada palavra .
Bjs. Lux.